01.05.2011

À conversa com Arq.ª Cristina Salvador

01.05.2011

À conversa com Arq.ª Cristina Salvador

‘A experiência no Namibe foi como chegar ao fundo da questão, àquilo que não se reveste de mais nada.’

É a primeira mulher a ter a palavra na Artes&Letras. Foi difícil entrar na profissão por ser mulher?

Quando eu iniciei a profissão, aconteceu-me uma situação “engraçada” enquanto trabalhava com o Arq. Manuel Tainha. Fomos a uma obra e, a certa altura, o Arq. disse ao empreiteiro que resolvesse um determinado problema comigo. E o homem desatou a rir como se fosse uma perfeita anedota. Ele achava que uma mulher, ainda por cima nova, não podia resolver-lhe nenhum problema. No início isto passava-se nas obras. Era complicado. Foi um terreno que se foi conquistando e que, felizmente, foi ultrapassado. Foi uma luta, em todas as profissões. Agora já não é assim, embora nós tenhamos sempre um trabalho, que é o trabalho em casa, que acresce ao horário em que exercemos a profissão. É uma posição ligeiramente mais difícil.

Deserto e Arquitectura são duas palavras que chegam a ser contraditórias. Porque é que decidiu deslocar-se até ao deserto do Namibe para fazer um trabalho de investigação?

Percebe-se, perfeitamente, qual é a razão dessa pergunta. Foram várias as razões mas houve, essencialmente, uma: eu achei que precisava de entender aquilo que ocorre, em termos de construção, em situações extremas, geográficas, neste caso; embora também me interessem outras situações extremas, como as económicas, nomeadamente, nos bairros de construção precária. Isso importa porque, no fundo, permite entender como é que é possível que haja, apesar de tudo, construções – que, no caso do deserto, são abrigos para os pastores – tão interessantes, sob o ponto de vista de gestão de recursos e, até, esteticamente. É como chegar ao fundo da questão, àquilo que não se reveste de mais nada a não ser a função para que se destina e o material restrito que é possível utilizar. Fui em busca destas situações emocionantes, do ponto de vista de quem olha, que são resultado de uma gestão dos recursos e da função a que se destinam e que, muitas vezes, são completadas com coisas que têm que ver com a maneira como as pessoas reagem a esses mesmo recursos. E encontrei muita coisa. Para aquilo que eu queria, que era tentar chegar ao osso da questão, a experiência ajudou. É muito importante, para mim, arquitecta, e se calhar para todas as pessoas relacionadas com a construção, perder algum tempo com estas questões. Foi uma experiência bastante importante porque me obrigou a reflectir sobre o tema, tendo sido objecto de uma conferência, o que me obrigou a juntar as reflexões que fui fazendo e que continuam até hoje, não parando mais. Obrigou-me a dar mais ou menos importância a determinadas coisas que, por vezes, ocorrem na minha profissão e que, se calhar, não são tão importantes assim.

A sua carreira profissional está extremamente ligada a Angola e chegou a referir que existe uma “clivagem entre Luanda e o restante território angolano”. Qual é que acha que é a solução arquitectónica para aquele país?

As soluções para os problemas urbanísticos das cidades africanas, em geral, têm de ser encontradas localmente. Eu participei em alguns trabalhos de investigação na área do urbanismo, nomeadamente na comparação entre a cidade de Luanda e Maputo, que foi um trabalho que me interessou muito e com o qual aprendi imenso. Com esses trabalhos, apercebi-me que cada cidade tem condições próprias e que as soluções têm de ser encontradas no seu seio. Investigadores podem ajudar mas as soluções têm de ser locais. Eu tenho muito gosto em reflectir sobre isso e, se essa reflexão servir para alguma coisa, tenho todo o interesse nisso. No caso de Luanda, é uma cidade que tem problemas muito graves, estruturais, problemas de infraestruturas e equipamentos, que têm de ser encarados como um problema geral, do centro da cidade até às áreas de expansão, e que tem de ser visto com cuidado e preocupação, e não ser dada atenção só às questões mais visíveis.

Quais são os condicionamentos que mais interferem na actividade do arquitecto?

Tudo tem a sua influência. De uma maneira geral, nós não escolhemos os projectos em que vamos participar, não temos essa opção, são encomendas. A nossa profissão é encontrar soluções para problemas concretos e jogar com o tipo de obra, com o que é possível fazer e com as verbas disponíveis, em cada situação concreta. Os problemas têm vindo a alterar-se. Neste momento existe uma grande dificuldade no sentido de ser necessário existir um enorme detalhe sobre o que se vai construir, num tempo muito curto, o que não permite que os projectos sejam apurados, ou bem vistos em todas as suas aplicações. É um esforço que se tem de fazer, e que reflecte uma urgência de construção, porque temos de apresentar alguns projectos em tempos recorde, o que leva a muito stress. Estas situações prejudicam os resultados.

Tem vários projectos realizados em parceria com a Betar. Há algum que a tenha marcado particularmente?

O edifício no Alto do Longo, de coordenação minha, que começou com o Eng. Rocha Cabral e depois continuou com a Eng.ª Maria do Carmo, foi um projecto que me deu um enorme prazer fazer e que está construído. O que é gratificante, porque há alguns projectos que não foram construídos, o que ainda dói muito. E esses acabam por ser mais marcantes do que as obras feitas, que seguem o seu caminho. A escola básica EB 1,2,3 de Gondifelos também foi um projecto interessante. Iniciou-se com um concurso, houve uma altura em que era possível concorrer aos concursos que nos interessavam mais e esses projectos eram sempre muito mais interessantes de fazer. Empenhávamo-nos muito porque nos interessava fazer aquele trabalho. Isso agora não acontece tanto. Houve alguns concursos especialmente estimulantes.

Esta entrevista é parte integrante da Revista Artes & Letras #20, de maio de 2011

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