01.09.2018

À conversa com Arq.º José Forjaz

01.09.2018

À conversa com Arq.º José Forjaz

‘Em Moçambique a arquitectura é para os ricos e os modelos que lhes servem são impostos aos pobres […] Estamos quantitativamente mais carenciados do que no princípio’

A arquitectura tem uma responsabilidade social inegável. Em 1974 aceitou participar na construção de um país. O que é que encontrou em Moçambique quando começou a trabalhar aqui? O que era preciso mudar?

Mudar é uma ideia limitativa. Na nossa profissão pouco muda com a mudança política, ou melhor, pouco muda de tecnológico. Mas era preciso aceitar e promover a mudança de ideologia o que, e assim o mantenho, tem sempre consequências económicas e estéticas. Naturalmente, em Moçambique, onde foi feita uma viragem política a 360 graus, viemos parar exactamente onde estávamos quando começámos em 1975: arquitectura é para os ricos e os modelos que lhes servem são impostos aos pobres. Claro que depois há os que nem pobres chegam a ser e são cada vez mais aqueles para quem uma chapa de zinco ou um bloco de cimento começa já a ser a esperança de ter casa. Não lhe posso dar estatísticas exactas, mas a minha intuição é a de que após todos os esforços feitos, que poderiam ter sido maiores, estamos quantitativamente mais carenciados do que no princípio.

E o que tem a dizer do país actual? A crise actual era evitável? Já está a passar, ou ainda vai durar mais? E a vida quotidiana das pessoas está a melhorar?

A crise actual é endémica e vai continuar pois as condições de base não estão a alterar-se com a rapidez suficiente. A falsa noção que a riqueza se vai distribuindo de cima para baixo, e de que os investimentos dos ricos se vão estruturando em meios de produção que beneficiam os pobres, ainda é defendida como um remédio eficaz para uma possível melhoria na distribuição da riqueza nacional! É uma ideia conveniente, mas que já não engana ninguém, sobretudo as classes mais desprotegidas que não estão interessadas em ideias e teorias, mas em pão e abrigo. É evidente que há hoje uma classe média em formação que tem beneficiado sobretudo da forma como o estado é roubado por políticos e funcionários corruptos e, na sua maioria, incompetentes. Ter um carimbo ou uma Kalash na mão é muito mais rentável do que trabalhar no campo, na obra ou na oficina… mas menos socialmente produtivo. Mas, para objectivar a resposta: pergunte a um camponês do Niassa ou da Zambézia se a vida dele e da sua família mudaram substancialmente nestes últimos 40 anos? É verdade que muito mudou desde o dia da independência de Moçambique. Mudaram sobretudo as condições psicológicas de auto respeito de um povo. Mais difícil é afirmar que as mudanças materiais são as que se esperavam.

Ocupou cargos no governo (Director Nacional de Habitação e Secretário de Estado do Planeamento Físico), tendo um papel importante na orientação da elaboração da lei de ordenamento do território moçambicano. Como foi esta intensa experiência? O que fez de mais relevante nessa altura e o que é que ainda falta fazer pelos dirigentes do país no futuro?

Foram experiências memoráveis, e que não trocaria por quaisquer outras, mas só possíveis no ambiente político de então. Hoje descubro e reconheço a nossa ingenuidade colectiva. Não tenho a certeza de ter feito alguma coisa relevante para o ambiente político actual. Talvez o mais significativo foi ter despertado a necessidade de se pensar o país como uma entidade física e um sistema ecológico e não apenas reduzi-lo a estatísticas económicas e sociais, que era o credo então imposto pelos nossos “aliados naturais”. Mas a introdução dos conceitos de planeamento físico, nacional, regional e local, só faz real sentido quando é acompanhada por uma grande intensidade de formação de quadros e com sua integração a todos os níveis num aparelho governativo que saiba preparar os termos de referência dos planos, que saiba lê-los e interpretá-los e que seja suficientemente íntegro para não se valer dessas capacidades e saberes em benefício próprio.

Foi ainda director da primeira faculdade de arquitectura de Moçambique. Sente que os profissionais locais estão cada vez melhor preparados para superar os desafios do país que tanto precisa deles?

Essa é uma questão muito difícil para mim pois desde que deixei a direcção da primeira faculdade de arquitectura do país não quis interferir na maneira como a prática pedagógica é agora conduzida. As minhas dúvidas têm a ver com a capacidade de assistir turmas com mais de 60 alunos, com um corpo docente, em geral, com reduzida experiência de docência e profissional e sem meios de ensino adequados: não há espaço nem equipamentos suficientes, não há laboratórios e oficinas, não há bibliotecas e centros de documentação. Eu continuo a recomendar um ano propedêutico que faça a ponte entre um ensino secundário insuficiente e introduza os níveis de curiosidade e apetência cultural indispensáveis ao ensino universitário. Não esqueçamos que o nosso meio social, técnico e cultural, é extremamente carenciado: como referência basta dizer que num país com quase trinta milhões de habitantes temos ao todo 6 livrarias. Pelo que sei as outras faculdades de arquitectura no país ainda têm piores condições. Não é, certamente, diferente o que passa noutras faculdades e universidades do país o que, a meu ver, tem e terá consequências desastrosas para a criação, a evolução e o desenvolvimento duma classe dirigente tecnicamente competente em Moçambique.

Esta entrevista é parte integrante da Revista Artes & Letras #100, de Setembro de 2018

 

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