01.04.2011

À conversa com Arq.º Gonçalo Byrne

01.04.2011

À conversa com Arq.º Gonçalo Byrne

‘Eu comparo as obras, um pouco, com o que acontece com os filhos: a partir de certa altura eles têm a sua autonomia, a sua vida...’

Foi ainda na adolescência que decidiu que queria ser arquitecto. O que é que a arquitectura tinha, e tem, de irresistível?

A opção de fazer arquitectura, no meu caso, foi relativamente precoce. A partir do 3º ano, o que equivalia ao 7º de hoje, para mim já era claro que me interessava arquitectura. O meu pai e o meu irmão eram engenheiros mas a arquitectura tem a componente artística que eu gosto. Ainda na escola primária, tive a sorte de ter um excelente professor de desenho, em Canas de Senhorim. Um daqueles mestres-escola que ainda existiam no final dos anos 40, um excelente professor, muito austero, que castigava, mas que foi uma referência para mim. Aos fins-de-semana, como eu gostava tanto de desenho, ele dava-me aulas em casa dele. Depois, no 3º ano, conheci um arquitecto em Leiria, Camilo Korrodi – filho de um arquitecto muito famoso, Ernesto Korrodi, ainda hoje uma referência – que tinha um atelier que eu achava fantástico. Depois, numas férias do liceu, voltei à Urgeiriça de autocarro e sentou-se ao meu lado um escritor americano. Perguntou-me o que é que eu queria fazer e eu disse que gostava de arquitectura. Imediatamente, o tipo recomendou-me a leitura de um livro, sobre a história de um famoso arquitecto americano. Encontrar um livro americano, naquela altura, era complicado, mas tive de vir a Lisboa, meses depois, e encontrei-o. Aquilo ainda reforçou mais a minha decisão. Felizmente não me arrependi e, ainda hoje, gosto imenso disto e espero ser um forte contestatário da reforma.

Tem uma paixão por cidades. Qual é a cidade que mais o impressiona e inspira, arquitectonicamente falando?

Eu costumo dizer que todas as cidades são fantásticas, mas penso que, no fundo, em todas elas há um bocadinho de Lisboa. É pena que tenha um centro histórico a cair. Em Portugal, não há nenhuma cidade que não tenha graves problemas de abandono nos centros históricos, mas Lisboa é capaz de ser a pior. Embora existam esforços. Acho que a actual gestão da Câmara de Lisboa, ao fim de muitos anos, tem projectos bem estruturados, nomeadamente o vereador do urbanismo. Não entendo porque é que nunca houve uma pessoa daquele calibre na gestão da Câmara. Finalmente existe e desejo que se mantenha porque, numa cidade, estas políticas, ou se desenvolvem em prazos longos, ou não adiantam nada. Tem de haver continuidade e convergência de vontades políticas à volta de projectos de qualidade e isso está a acontecer com Lisboa, neste momento. O problema da recuperação da Baixa é um problema económico. A maior parte dos proprietários, os que ainda têm inquilinos, são mais pobres que os próprios inquilinos. Portanto não há mecanismos de renovação. Apesar disto, os investidores sabem que, daqui a uns tempos, aqueles terrenos vão valer muito dinheiro e é preferível não fazer nada, porque com o passar do tempo o capital do terreno valoriza. Há uma série de fenómenos que têm contribuído para aquilo. Tem de haver um reenquadramento financeiro de toda a Baixa. E essa perspectiva existe, finalmente, graças a este plano.

Disse, uma vez, que “um projecto deve conseguir fazer sentir que sempre existiu”. O que é que faz para que a sua obra consiga uma fusão perfeita com o local onde está inserida?

Nestas coisas não há uma receita… se houvesse, as obras seriam todas iguais e não teriam grande graça. O que é fascinante na arquitectura é que cada projecto é um desafio, que pressupõe basicamente duas coisas: grande rigor e exigência, por um lado e, por outro, um fascínio, um gosto, um empenho… mergulhar dentro do terreno. A pior coisa que pode acontecer é um projecto feito por desfastio. Dará, certamente, um mau edifício. Os edifícios não mentem. Uma pessoa que entenda minimamente de arquitectura, percebe, ao olhar para um edifício, o processo que esteve por trás dele. Há outra coisa que é muito importante: as cidades têm tempos longos. Em Portugal, as principais cidades têm cerca de dois mil anos de história. Portanto, há sempre um problema que é a relação entre o que existe e o que se projecta. E eu acho que é muito importante perceber, em profundidade, aquilo que foi feito antes do nosso projecto. Mas as cidades, apesar de terem essa herança e essa memória, são organismos vivos e têm de continuar a viver, o que quer dizer que a própria identidade tem de ser reinventada e portanto os projectos têm sempre uma dimensão transformadora, criativa. As pessoas, muitas vezes, pensam que as cidades devem ser intocáveis, só se deve repetir o que existia, mas isso é a pior coisa que se pode fazer a uma cidade, porque a torna num museu. Isso é matar a cidade. Infelizmente é isso que está a acontecer nas cidades portuguesas, não por acção directa, mas por inacção. A pior coisa que pode acontecer é os edifícios perderem uso, começarem a ser desabitados, abandonados, porque imediatamente e inexoravelmente entram num processo de ruína e isso precipita a erosão das cidades.

Tem facilidade em desligar-se da obra, depois de concluída?

Há muitos colegas meus que vivem obcecados com o mau uso da obra. Mas há uma coisa que é importante: as obras ficam para lá dos arquitectos. É completamente irrealista pensar que hei-de continuar toda a vida a mandar na obra. Em primeiro lugar, ela não é minha e, em segundo, eu espero ela possa cumprir uma das características da arquitectura que é a permanência no tempo. Vai ter de se aguentar sozinha. Quando acabo uma obra é claro que fico mais ou menos atento, mas acho que ela tem de ser madura. A obra, quando é entregue, quando vai viver a vida com os donos dela, tem de ser autónoma. Não me faz muito impressão, uma vez acabada, que a obra siga por si só. Quem sabe se, um dia, ela não tem condições para se manter e alguém decide demoli-la. É uma condição da própria vida dos edifícios. Eu comparo as obras, um pouco, com o que acontece com os filhos: a partir de certa altura eles têm a sua autonomia, a sua vida. Não é exactamente igual porque os edifícios não têm um ciclo fechado, como a vida orgânica. Se há um prédio de 1800 que hoje está habitado, é porque foi reabilitado, reajustado aos modelos de vida de hoje. Portanto um edifício pode, perfeitamente, viver sempre. Mas isso não está só na mão do projecto, basta haver, por exemplo, um terramoto como este do Japão [sismo de Tohoku, Março 2011]. Mas pior do que as catástrofes naturais são as que são projectadas pelo homem; a guerra pode arrasar uma cidade, ou a pior de todas, que é o abandono. Uma cidade pode acabar num campo de arqueologia, como Conímbriga, que foi totalmente abandonada e desapareceu.

Esta entrevista é parte integrante da Revista Artes & Letras #19, de abril de 2011

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