01.09.2014

À conversa com Arq.º Fernando Bagulho

01.09.2014

À conversa com Arq.º Fernando Bagulho

Há um rally de aviões C130, sistematicamente ganho por portugueses da FAP, que tem meia dúzia destes aviões, competindo com tripulações de países que têm centenas. O mesmo direi dos arquitectos de uma terra onde nunca é possível o mais fácil e tudo é conseguido com esforço.’

Em 1976, fundou o Atelier do Chiado, com Cristina Salvador. Fale-nos da história do atelier.

Em 1974, estávamos em Angola, a Cristina à espera de uma filha angolana, com parto previsto para 25 de Abril e eu à espera de fazer mais 9 meses para acabar a tropa. Vistos lá de baixo, os acontecimentos na metrópole não pareciam reais, mas sim uma espécie de ficção entre um romance do Tolstoi e um livro do John Reed. No regresso, o atelier próprio era caminho único para exercer o ofício, com todos os ateliers bloqueados e sem trabalho para oferecer a quem voltava da guerra.

O Atelier do Chiado tem forte ligação a Angola. Projetou, entre outros, o edifício ESCOM, emblemático na cidade, símbolo do desenvolvimento do país. Como tem sido trabalhar em Angola?

A arquitectura e a música constituem linguagens universais que respondem, na contingência de cada criação, ao problema colocado. Trabalhar em Angola, em França, no Egipto, na Rússia ou em qualquer outro lugar é, desde sempre, um tema corrente para os arquitectos. Variam os instrumentos para criação dos factos arquitectónicos, a herança cultural de cada lugar ou os instrumentos dos seus próprios materiais mas, sendo a arquitectura um fenómeno ligado às emoções, trabalhamos para o homem universal, nas circunstâncias e contingências de cada lugar, cujo estudo aprofundado fundamenta cada projecto.

Acha que está a ser feito um bom trabalho no país em termos de planeamento urbano, ou há muito para fazer nesse campo?

Está a ser feito um mau trabalho nas partes do mundo onde há crescimento económico e apenas nas economias deprimidas não assistimos a tantos disparates, mas pelas piores das razões e em prejuízo das pessoas. A casa perdeu valor de uso para o de troca, tornando-se num produto financeiro, o que veio encostar a classe média às tábuas. A transformação de bens de consumo em produtos financeiros é catastrófica a nível global e os mais atingidos são sempre os mais fracos.

O número de arquitectos formados em Angola ainda é reduzido. Considera que se tende a ocidentalizar os traços arquitectónicos ou, no geral, está a ser feito um trabalho que tem em conta as características do país?

Quanto aos arquitectos angolanos com as quais trabalho directamente, não vejo que sejam mais frágeis em relação a influências externas do que os de qualquer outro país. O mesmo direi dos meus alunos africanos na FAUTL (actual FAUL), todos de grande qualidade, baseada numa postura humilde em relação ao conhecimento, como base segura do processo de aprendizagem.

Com base na sua experiência de docente, como qualifica o ensino de arquitectura hoje em Portugal?

Pelo lado dos resultados, direi que estudantes e arquitectos gozam de boa avaliação de desempenho em todo o lado. Há todos os anos nos EUA um Rally para aviões C130, sistematicamente ganho por tripulações portuguesas da FAP, que dispõe de apenas meia dúzia de aviões deste tipo, competindo com tripulações de países que têm centenas. O mesmo direi dos arquitectos, distinguindo-se no trabalho do projecto, pela perícia em fazê-lo levantar voo e aterrar em terra firme. Todos devemos ter beneficiado da aprendizagem numa terra onde nunca é possível o mais fácil e tudo é conseguido com esforço, em meio agressivo e, por vezes, hostil.

O que é que sempre tentou transmitir aos seus alunos para que se capacitem, quer como futuros profissionais, quer como “opinion makers”?

Desconfiem da arrogância, tanto como da monumentalidade, e não temam a humildade do arquitecto “operário do projecto”. Divirtam-se a ouvir os “opinion makers” mas construam opiniões próprias a partir do pensar e não do ouvir dizer.

São conhecidas as suas posições em relação ao RGEU, aos interesses imobiliários especulativos, aos erros de gestão de organismos do Estado… Na sua opinião, o que deveria mudar nas regras que regem a arquitectura?

A especulação imobiliária é uma doença que não serve a sociedade, nem o investidor. Em países como na Holanda, o investimento imobiliário é sujeito a taxa máxima de rentabilidade, a partir da qual vai tudo para impostos, e não há falta de gente ou de capital para investir, funcionando bem o mercado e a supervisão. Entendo que os regulamentos da edificação não devem ser prescritivos mas sim orientados para o desempenho de proteger o ser humano da agressividade do clima, ou seja, que se deve apoiar primeiro nas leis da Física e, secundariamente, no resto. Sem cidadania, o investidor está mais desprotegido. Quem não quiser instalar gás, ou mais do que caixa de correio para comunicar com o exterior, em edifício para seu uso exclusivo, está legalmente inibido de o fazer, mas em relação aos sismos, que decorrem de leis da Física, já será sujeito a menor controlo.

À luz da sua experiência profissional, como vê a arquitectura contemporânea em Portugal?

A arquitectura nunca foi subsidiada e (talvez por isso) atingiu uma projeção externa impensável para um país pequeno e tão periférico. Será que os arquitectos portugueses se distinguem do mesmo modo que os Etíopes nas provas de maratona? Será que a luta quotidiana de ambos contra a adversidade os prepara para atingir patamares superiores de perícia (que se reflete nos resultados)?

O SAAL, criado em 1974, foi um movimento ímpar na história do pensamento urbano. Como foi participar nesse programa? Um novo SAAL faria sentido ou era possível hoje, dadas as carências que se fazem sentir actualmente?

O SAAL foi uma experiência ímpar e fantástica, a nível global. O Decreto do Portas dizia uma coisa e as tensões e jogo de forças em presença, fizeram outras e variadas, o que significa que aquele quadro legal era uma boa base de trabalho. Tenho pena que algumas ideias então geradas não tenham sido levadas à prática, como a que tomava o decreto à letra, no que refere ao investimento de recursos das populações mal alojadas, remetendo o investimento público às ruas, praças e fachadas (infraestruturadas) dos edifícios, apoiando habitações flexíveis evolutivas. Hoje, já não é só o lumpen a estar encostado à parede, mas largas franjas da classe média que está em situação precária e sem rendimentos para conseguir manter a casa que comprou com recurso a empréstimo hipotecário. Os movimentos de “co-housing” que afloram por todo o lado, são uma resposta possível e o Decreto do Portas continua a aplicar-se por inteiro, bastando haver vontade política de seguir por caminhos diferentes, em que muitos hábitos de consumo terão que mudar.

Esta entrevista é parte integrante da Revista Artes & Letras #56, de setembro de 2014

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