01.12.2018

À conversa com Eng.º Vicente Miranda

01.12.2018

À conversa com Eng.º Vicente Miranda

‘Em Moçambique há pouca formação para desenvolver a classe de engenheiros civis e falta coragem para garantir mais qualidade nos projeto, porque isso significa contrariar e aborrecer os países financiadores.’

Engº Miranda, como iniciou a sua carreira?

Terminei o curso de Engenharia Civil em 1982, Ramo de Estruturas. Iniciei-me na única empresa de construção e projecto privada Moçambicana, a SOGEL, Sociedade Geral de Empreitadas, gerida pelo melhor eng. Moçambicano de estruturas da época, o Eng. Pericao Gomes Pinto. A SOGEL era especializada em pontes e estruturas especiais e oferecia sempre uma alternativa melhor e mais económica. Era pioneira em pré-esforço, em Moçambique, e éramos sempre chamados para soluções de emergência, em pontes destruídas pela guerra ou desastres naturais. Ali fiz, durante 10 anos, construção e projecto de estruturas. Em 1992 fui convidado para eng. residente da reconstrução da ponte do Xai-Xai, pela empresa americana Louis Berger, e não mais deixei as pontes.

Na reposição do pilar da ponte do Xai- Xai utilizou soluções muito inovadoras e trabalhou com o Eng. Edgar Cardoso. Como foi essa experiência?

Foi motivador saber que iria trabalhar com o Prof. Edgar Cardoso nesta obra. Sabia que seria difícil, pois todas as histórias que tinha ouvido dele salientavam o seu espírito forte. A obra era para repor a torre norte ruída e dois tramos de 33 metros da ponte de tirantes, projectada e construída por Edgar Cardoso na década de 60. Usaram-se soluções inovadores mas lembro-me que os pequenos debates com o professor eram muito difíceis, embora revigorantes, e por vezes tínhamos de usar soluções um pouco escondidas dele, que não gostava que se questionassem os seus detalhes.

Acompanhou a evolução do mercado de construção em Moçambique e foi Consultor de Pontes da ANE. Qual a sua visão da evolução do sector das obras públicas no país?

Acho que estamos no bom caminho. Entrei na ANE em 2003 e fiquei até fins de 2012. Até essa data, só tínhamos feito pontes convencionais, exceptuando as pontes de Edgar Cardoso, únicas no mundo, duas suspensas e uma atirantanda, executadas no período colonial. Consegui introduzir novos métodos e foi assim que fizemos a primeira ponte em caixão pré-fabricado e lançado por deslizamento sobre pilares, no rio Limpopo, Guija (500 metros); a primeira ponte em caixão construída com apoio de viga metálica de lançamento, no rio Rovuma (700 metros); a primeira em consola, com viadutos em caixão, no rio Zambeze, Caia (2376 metros); culminando com a ponte sobre a Baía de Maputo- Katembe, suspensa, com viadutos em viga pré-fabricada, em caixão e em consola.

Foi o Gestor Técnico da Ponte Maputo/ Katembe na fase inicial. Quais foram as intenções do projecto e os principais desafios que encontrou?

Fui o representante do dono da obra, que é o gestor do projecto num projecto turn key como este. Era a travessia que faltava para ligar o extremo sul ao extremo norte de Moçambique, por estrada. Mais importante era impulsionar o desenvolvimento da outra margem de Maputo, cidade bastante lotada, um pouco como Lisboa e a margem sul com a ponte 25 de Abril. Todas questões foram difíceis de resolver mas sempre estimulantes, até um certo nível. Havia questões físicas, como as consignações de terreno ocupado, quer pelo Porto de Maputo, quer pelos Caminhos de Ferro. A linha eléctrica principal de Maputo teve de ser movida e o principal: habitantes de Maputo e Katembe tiveram que ser realocados. Depois houve a situação do projecto ser financiado pela China, que quis impor os seus regulamentos. Ao nível da qualidade, tratava-se de um projecto turn key, sem fiscalização mas com controlo de qualidade do empreiteiro; tínhamos falta de pessoal qualificado e um orçamento exíguo que ditou uma supervisão insuficiente do dono de obra. Houve infelizmente questões importantes de projecto e controlo de qualidade que ficaram por resolver e que ditaram a minha saída.

Em que medida é que a BETAR contribuiu para o sucesso do projecto?

Imenso! A Betar é que lançou este projecto e fez o governo moçambicano interessar-se por ele. Fez o anteprojecto e todos os estudos preliminares, desde topográficos, condições essenciais, como o gabarit marítimo e a própria localização. O controlo de qualidade de obra e de projecto, até 2014, era efectuado pela equipa do dono da obra, apoiada pela BETAR. E muitos erros e omissões foram corrigidos pela intervenção da BETAR.

Como consultor ao nível de grandes projectos de engenharia, quais acha que são os maiores obstáculos e o que falta efectivamente fazer em Moçambique?

Sobretudo a falta de qualidade dos técnicos, há pouca formação e poucas possibilidades de desenvolver a classe de engenheiros civis pois os escassos projectos que existem são desenvolvidos por empresas estrangeiras. Falta também coragem para garantir mais qualidade no projecto e nas obras, porque isso, muitas vezes, significa contrariar e aborrecer os países financiadores. Em engenharia não se pode aceitar que “a cavalo dado não se olha o dente”. Por outro lado, estamos numa crise económica grave e grandes projectos não estão a ser executados e muito menos com autonomia moçambicana. Os jovens engenheiros tem poucos recursos e preocupam-se mais em sobreviver do que em desenvolver a técnica.

Esta entrevista é parte integrante da Revista Artes & Letras #103, de Dezembro de 2018

 

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