02.01.2019

À conversa com Arq.º Afonso Almeida Fernandes

02.01.2019

À conversa com Arq.º Afonso Almeida Fernandes

‘A CAuSA pretende ser uma associação de arquitectos e engenheiros, que têm vontade de ajudar, falta-lhe é tempo e iniciativas’

Fale-nos do seu percurso.

Eu saí da faculdade em 2014 e estive dois anos no Atelier Aires Mateus e Associados.
O Manuel Aires Mateus foi meu professor. No final do curso tive uma encomenda para uma habitação e decidi arriscar e abrir atelier. Juntei-me à arquitecta Mafalda Neto Rebelo, que foi minha sócia durante dez anos, no CHP. Quando começámos a ter projectos de dimensão mais interessante rebentou a crise. Tivemos a sorte de ir para Angola com um único projecto, mas de dimensão colossal. Eram cinco torres que albergavam alguns ministérios, um centro comercial, escritórios e 150 habitações, o equivalente à população de Leiria. Ocupou-nos durante os quatro anos da crise em Portugal. Depois regressámos. Há dois anos, decidi sair da CHP porque sempre tive uma componente de solidariedade forte na minha vida, fiz muito voluntariado, sempre quis estar ligado a isso e não conseguia fazê-lo sem lesar os meus sócios. Saí, com alguma pena, mas correu bem. Fundei o meu atelier, Almeida Fernandes Arquitectura, somos quatro, e o trabalho que faço é igual ao que fazia.

Em relação à componente solidária, o que nos conta.

Em Outubro de 2017, disponibilizei-me para ajudar na catástrofe do incêndio no Norte. Juntamente com a escola dos meus filhos, fui para lá logo na segunda semana, como voluntário, para dar apoio àquelas pessoas. Há medida que se foram definindo as coisas, percebi que também podia ajudar enquanto arquitecto. As casas afectadas pelo fogo receberam fundos do Estado, mas deparámo-nos com outras que, não tendo ardido, não tinham condições de habitabilidade, necessitavam igualmente de ser recuperadas, havia famílias inteiras sem electricidade e sem água. Foi nessa altura que decidi criar uma associação, que em princípio será em breve uma ONG, que se chama “CAuSA – Unidos por uma casa”, que pretende levar a arquitectura a quem não tem. No Verão, trabalhei com uma associação para reabilitar 30 daquelas casas, chama-se “Just a change” e reúne voluntários num campo de Verão, arranja dinheiro e contrata empreiteiros locais que coordenam grupos de voluntários para reconstruir casas. O meu papel foi identificar as casas, juntamente com as autarquias de Santa Comba Dão, Tondela e Arganil, e fazer os projectos de arquitectura, medições e orçamentos. Em Tondela pediram-nos para recuperar alguns anexos agrícolas, porque 90% dos lesados foram agricultores de subsistência, pessoas que não ficaram sem habitação, mas ficaram sem todo o seu sustento. Quem perdeu a casa, teve uma casa nova, e estes agricultores perderam alfaias, tractores, barracões, hortas e animais e receberam cinco mil euros. Nestes casos, o que a CAuSA fez foi construir anexos agrícolas, multifunções, inspirados na construção tradicional do modelo dos espigueiros do Norte, reaproveitando a madeira ardida, que foi recuperada nas serrações locais. O anexo custa 3500 euros, cerca de metade do preço de mercado, é feito com mão-de-obra local, devolve esperança e dignidade e evita a proliferação da construção de barracas em chapa.

E o que se segue?

A ideia seguinte é implementar este projecto a uma escala maior que envolve as cozinhas sociais das aldeias. Em Arganil foi a Santa Casa da Misericórdia que fez o levantamento dos casos porque estão muito próximos da população, têm uma equipa de apoio ao domicílio que leva refeições às pessoas nas suas casas. O que pretendíamos era interligar os agricultores com estas cozinhas, que compram os legumes nos supermercados. Com a compra do anexo, ou de uma parte, nem que seja simbólica, o agricultor ficaria ligado a uma cooperativa, podendo produzir legumes para vender a estas cozinhas sociais. A ambição da associação, que está mesmo no início, é vir a ser uma associação de empresas de arquitectura e engenharia, porque os arquitectos e os engenheiros não têm uma vertente de responsabilidade social, mas têm imensa vontade, falta-lhe é tempo e iniciativas. Associarem-se à CAuSA permite-lhes ser solidários e ajudar com aquilo que sabem fazer melhor. A ideia é estabelecer uma quota de empresa que alimente uma pequena equipa, que trabalhe para este fim de levar a arquitectura a quem não tem.

Quanto à vertente atelier, o que tem feito?

Fizemos uma pequena conversão de um terraço, com uma estrutura de ensombramento, uma cozinha e uma zona de estar, no último andar de um edifício; uma clínica de psicologia para famílias, com uma área com gabinetes e outra tipo centro de estudo, inspirada num andaime, com diferentes zonas onde as crianças podem sentar-se a ler, uma biblioteca, cozinha e zona de refeições. Com a BETAR fizemos dez moradias em Paço d’Arcos num lote trapezoidal, com uma inclinação considerável. Fizemos seis moradias geminadas e quatro isoladas, cujos jardins ficam em socalcos, desnivelados uns dos outros, o que lhes dá privacidade. Na Comporta, vai agora começar a ser construída uma moradia inspirada no cais palafítico e nas casas de colmo, onde o interior e o exterior se fundem. Desenhámos vários blocos em madeira, interligados por um corredor em vidro, ou seja, os volumes unem-se numa simbiose entre interior e exterior, onde temos a sensação de estar fora estando dentro e vice-versa. No fundo a arquitectura para mim também é isto, espaços que não têm grande funcionalidade, são só bonitos e servem para estar e serem vistos.

Esta entrevista é parte integrante da Revista Artes & Letras #104, de Janeiro de 2019

 

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