01.06.2020

À conversa com Arq.º Yorick Houdayer

01.06.2020

À conversa com Arq.º Yorick Houdayer

‘As crianças da praia da Fortaleza chamaram-me Amigo Manholiho, amigo que recompensa. Guardei este nome até hoje, obrigando-me a respeitar o contrato moral incluído no nome’

Fale-nos um pouco do seu percurso antes de ir para Moçambique.

Nasci em 1955 numa pequena ilha, Tatihou, situada no Canal da Mancha, na Normandia. Em 68 os meus pais compraram uma antiga quinta em ruínas, na Bretanha, que reabilitámos durante cinco anos. Assim aprendi a gostar de todas as artes da construção com o meu pai. Após o serviço militar fui estudar arquitectura em Rouen, ganhando a vida como professor auxiliar de desenho em escolas secundárias. Pouco depois fiz uma viagem de seis meses à África Ocidental, a pé com mochila e fracas poupanças. Fiquei encantado pela experiência e a extraordinária beleza e dignidade dos povos do Sahel e, em 89, viajei com Marie durante um ano, de Marrocos até à Tanzânia, numa Peugeot 504, o “leão da África”. No regresso a França, trabalhei como arquitecto, mas com o sonho de voltar a África.

Chegou à Ilha de Moçambique em 1995, em resposta a uma oferta da Associação Arquitectos Sem Fronteiras. O que o motivou?

O meu primeiro trabalho foi de reabilitar os centros de saúde destruídos pela guerra civil na Província de Quelimane, e depois na Província de Maputo, com Médicos sem Fronteiras da Bélgica e de Espanha. Comecei a ficar conhecido neste meio e a ONG francesa Hospital sans Frontières, enviou-me para a Ilha para reparar as coberturas do Hospital e logo a seguir as do Palácio do Governador, o actual Museu da Ilha de Moçambique. Essas obras deviam demorar oito meses. Acabei por ficar 25 anos. Conheci Nina. Motivou-me a sensação da ruptura com as minhas raízes e o mergulho num país totalmente desconhecido, assim como a aprendizagem de outra língua.

Quando chegou, encontrou casas sem manutenção e a história da colonização portuguesa a desaparecer. O que é que pensou?

Fiquei claramente dividido. Primeiro tinha a necessidade de ganhar a vida com o restauro do Património Mundial da Humanidade herdado do colonialismo português.  Em contraponto, tinha uma paixão pelas construções locais, onde viviam os trabalhadores das obras de restauro. Aprendi com os construtores Macuas a construir com as técnicas vernaculares e matérias locais e hoje vivo perto deles, no bairro de Maringwe, na aldeia de pescadores de Jembesse, numa palhota construída de maneira pessoal.

A Ilha, como quase toda a África, vive num ritmo diferente. Quais as principais dificuldades?

Acho que, quando se trata de obras ligadas ao restauro, é a obrigação de ensinar, não só as técnicas construtivas de uma cultura muito distante da dos trabalhadores, mas também o facto de promover os valores, como a permanência do peso histórico. São conceitos diametralmente opostos ao carácter efémero, sustentável, leve e reprodutível das construções vernaculares tradicionais rurais, apesar de hoje em dia haver uma progressão inelutável do abandono dessas técnicas. As palhotas de pau a pique foram ultrapassadas por casas de cimento, cobertas com chapas metálicas, sem tempo de transição e, devido ao crescimento demográfico, as soluções modernas tornaram-se construções precárias, agora marcadores de pobreza. Construi a minha própria casa em técnicas mistas, tradicionais locais e convencionais europeias, para optimizar e adaptar as qualidades de cada uma, numa tentativa de realizar o elo em falta entre os dois tipos de técnicas. Foi um laboratório e uma aventura.

Li que foi conhecido como “Manholiho” por pagar salários quase normais…

Esse nome foi-me dado pelas crianças, em 96, na praia da Fortaleza, enquanto procurava missangas de vidro na areia. Procuraram comigo e ofereceram-me o que apanharam. Agradeci-lhes com tori-tori, um doce torrado feito com amendoins e açúcar. No dia seguinte chamaram-me Amigo Manholiho, amigo que recompensa. Guardei este nome até hoje, obrigando-me a respeitar o contrato moral incluído no nome. Ganho mais dinheiro que a maior parte da população local e redistribuir, neste caso, é um dever. As crianças da praia ensinaram-me isso.

Que projectos fez recentemente e tem em curso?

Restaurei, nos últimos cinco anos, com o meu colega Mohammad Cássimo, Dulinho, um jovem arquitecto da Ilha, a antiga Quarentena, as Alfândegas e três casas familiares geminadas. Neste momento estamos à espera da continuação das obras do Hospital, que foi projectado e iniciado e que a crise económica paralisou provisoriamente, mas que não justifica um abandono, espero eu.

Em que medida é que a BETAR tem contribuído para superar os desafios que lhe colocam?

Era uma necessidade porque localmente não temos engenheiros deste nível, infelizmente. Os engenheiros do BETAR trabalharam sobretudo com os meus colegas José Forjaz e Victor Tomas, em Maputo, responsáveis pelo projecto de reabilitação do Hospital da Ilha. O que posso dizer é que o profissionalismo da BETAR responde à exigência das normas europeias, enquanto as condições de realização são totalmente locais. Esta confrontação ajudou a seleccionar ou adaptar as soluções correspondentes à realidade moçambicana, a partir de soluções tecnologicamente óptimas.

Esta entrevista é parte integrante da Revista Artes & Letras #120, de Junho de 2020

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